Há
180 anos, no dia 25 de Ramadan de 1250 (ou 25 de janeiro de 1835), em Salvador,
na Bahia, ocorria a Grande Revolta dos Malês [1], muçulmanos escravos e
libertos pertencentes aos povos iorubá/nagô, haussá, nupe e jeje, sob a
liderança militar e religiosa de Pacífico Licutan, Manoel Calafate, Ahuna,
Elesbão do Carmo e Luísa Mahin (mãe do abolicionista Luís Gama).
Sufocada violentamente a Revolta pelas tropas imperiais, os
sobreviventes tiveram dois destinos diferentes, além daqueles que
permaneceram em Salvador.
Os
deportados e alguns libertos retornaram à África (Gana, Togo, Nigéria e Benin) [2].
Na atual República de Gana, por exemplo, seus descendentes constituíram, a
partir de 1836, a comunidade afro-brasileira do Povo Tabom, a qual existe até os dias de hoje [3]. E na atual República
do Togo, o primeiro presidente, Sylvanus Olympio, eleito em 1961, era
descendente de afro-brasileiros retornados.
O
outro grupo era composto por escravos fugitivos e libertos que se evadiram pelos
sertões da Bahia, alguns dos quais, posteriormente, formaram quilombos no
Nordeste e no Norte, porém a grande maioria, através das matas, migrou rumo ao Sudeste
do Brasil, segundo relata Nelson Brito Rodrigues [4].
Na
Bahia, passaram por Jequié, Ilhéus, Itabuna e Porto Seguro. A seguir, chegaram
a São Mateus, Linhares, Vitória, Vila Velha e Cachoeiro do Itapemirim, no
Espírito Santo. A partir daí, entraram na então Província do Rio de Janeiro,
onde foram acossados e perseguidos pela Guarda do Império. Quando atingiram o
Rio de Janeiro, já seriam milhares deles, ainda segundo Brito Rodrigues.
Novamente,
empreenderam fuga por florestas e matas, passando por Campos de Goytacazes,
Macaé, Rio de Janeiro e Duque de Caxias. Em seguida, atingiram a Província de
São Paulo, percorrendo as regiões de São José dos Campos, Sorocaba, Bauru e
Lavras de Apiaí.
Eram
nômades, não se fixavam por muito tempo em uma determinada região. Semelhante aos
indígenas, viviam e sobreviviam nas densas florestas, porém criavam animais, praticavam
a agricultura de subsistência, eram hábeis artesãos e tecelões, possuíam aptidão
para o comércio e viviam em moradias construídas de pau a pique com cobertura
de folhas de palmeira ou de sapé.
A
partir de Lavras de Apiaí, através dos rios Tietê e Paranapanema, os nômades
malês dividiram-se em três grupos.
O
primeiro grupo atingiu a Província de Mato Grosso e se estabeleceu na cidade de
Vila Bela da Santíssima Trindade, a qual foi a primeira capital mato-grossense à
época do Brasil Colônia, na fronteira com a Bolívia. O líder deste grupo
chamava-se Miguel Subtil e teria sido um dos fundadores da atual Cuiabá.
Até os dias de hoje, Vila Bela é considerada como a “Cidade Negra” em razão da
ampla presença de descendentes de escravos africanos.
O
segundo e o terceiro grupo de nômades malês – e são estes grupos que, em
particular, nos interessam no presente texto – atingiram, por volta de 1850,
a quinta Comarca da então Província de São Paulo, ou seja, o atual Estado do
Paraná.
O
segundo grupo chegou ao Paraná pelo Vale da Ribeira, Vale do Iguape e Serra
Geral. Fixou-se principalmente nas regiões de Cerro Azul, Adrianópolis, Tunas
do Paraná, Campina Grande do Sul, Antonina, Morretes, Ponta Grossa, Castro, Palmeira e várias outras cidades.
O
terceiro grupo entrou no Paraná, através do rio Paranapanema, por volta de 1860
e se espalhou pelo norte paranaense: Cianorte, Cambará, Andirá, Londrina, Ibiporã, Apucarana,
Arapongas e Rolândia, entre outras cidades.
Os
líderes do segundo e terceiro grupo chamavam-se Sebastião Subtil e Domingos
Subtil. De seus sobrenomes, perdendo a letra “b”, surgiu a denominação de Povo
Sutil no Paraná.
Portanto, durou entre 15 e 20 anos o tempo de deslocamento, de êxodo, desde a Bahia até a chegada ao Paraná.
Portanto, durou entre 15 e 20 anos o tempo de deslocamento, de êxodo, desde a Bahia até a chegada ao Paraná.
Embora
não seja possível se conhecer com exatidão a quantidade de indivíduos Sutis que
viveram no Paraná e em outros Estados, é importante salientar que o autor Steven
Barboza estima que, em 1910, haveria cerca de 100.000 muçulmanos africanos vivendo no Brasil [5].
Com
o passar das décadas, os Sutis foram gradativamente perdendo sua condição de
nômades e passaram a se fixar em glebas de cultivo. De igual modo, foram também
perdendo sua identidade religiosa e cultural, particularmente pela ausência de alufás (mestres ou líderes religiosos muçulmanos) nessas comunidades dispersas. Num país eminentemente católico, o
sincretismo religioso para eles tornou-se uma maneira de evitar confrontos com
os brancos e com povos negros de outras religiões. Sofreram, assim, um longo processo
de aculturação e, finalmente, assimilação.
Na
cidade de Castro, por exemplo, os malês teriam fundado a denominada “República
de Sinhara”, na Fazenda Capão Alto, hoje tombada pelo Patrimônio Histórico [6].
Esta Fazenda foi entregue aos escravos que nela residiam e trabalhavam e que organizaram
aquela república, porém já sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo, por
herança católica de padres carmelitas [7].
Em localidade próxima à cidade de Ponta Grossa, o Povo Sutil que ali já vivia recebeu por doação, em 1854, uma parte da Fazenda Santa Cruz (6.350 hectares, entre os municípios de Ponta Grossa e Palmeira). Essa parcela de terras passou a ser
chamada de Sutil em referência ao nome de Benedito Sutil, um tropeiro
oriundo de Sorocaba que ali se hospedava, quiçá descendente ou parente dos líderes pioneiros
Miguel, Sebastião e Domingos Subtil [8]. Atualmente, a Fundação Cultural Palmares
reconhece a Colônia Sutil como sendo uma das muitas comunidades quilombolas no
Paraná – 35 no total [9].
No
Norte do Paraná, da miscigenação dos índios guaranis com os descendentes dos
Malês teria surgido o caboclo muçulmano “aré", ou seja, o caboclo sutil autóctone,
já nascido em terras paranaenses. Ainda hoje, no município de Paiçandu (próximo
a Maringá), há uma pequena capela cercada por pedras brancas denominada de “Cemitério
dos Caboclos”, alusão aos muçulmanos arés [10]. Claro exemplo de aquisição de novos
costumes e crenças não-islâmicas, esse cemitério é o pouco que restou dos Sutis
que habitaram aquela região e que seriam oriundos de Assungui de Cima, distrito
do atual município de Cerro Azul, na região metropolitana de Curitiba. Não
muito longe de Paiçandu, na cidade de Cianorte, os nômades Sutis foram os pioneiros na colonização da cidade e dali foram retirados posteriormente pela Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná [11]. Em Japurá, noroeste paranaense, a única lembrança
que sobrou da existência dos Sutis na região é o nome do povo em uma de suas
ruas [12].
Portanto, se é
possível
afirmar que os Sutis tenham sido os primeiros muçulmanos do Paraná, bem antes
da imigração árabe, e se é plausível dizer que pouco ou quase nada restou
de suas tradições e costumes islâmicos, contudo é certo também que, por não serem
brancos nem cristãos, foram naturalmente esquecidos pela história oficial do
Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LÔR, Haroldo Victor. Álbum Comemorativo do 25º aniversário de Emancipação Política do Município de Apucarana - Estado do Paraná. Arapongas/Apucarana, Gráfica Wilger e Indústrias Gráficas Santa Terezinha, 1968. (2ª edição: Arapongas, Editora Quessada, 1969)
HARTUNG, Miriam Furtado. A comunidade do Sutil: história e etnografia de um grupo negro na área rural do Paraná. Rio de Janeiro, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000 (tese de doutorado).
RODRIGUES, Nelson Brito. O Povo Sutil: um povo que caiu no ostracismo da História Paranaense. São Paulo, Editora Gregory, 2012. 340 páginas.
O Povo Sutil (Nelson Brito Rodrigues) |
Vídeo sobre a Colônia Sutil, na cidade de Ponta Grossa:
NOTAS:
[1] Designamos como a Grande Revolta dos Malês pois houve outras rebeliões escravas que a precederam: 1807, 1809, 1814, 1826, 1827 e 1828.
[2] A propósito dos deportados, em novembro de 1835, o primeiro navio "deixou Salvador com destino a Uidá [Benin] levando duzentos africanos a bordo", segundo informa João José Reis em "Rebelião Escrava no Brasil - a História do Levante dos Malês em 1835". São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2012, página 481.
[3] Sobre o Povo Tabom (assim chamado por usar a expressão "Tá bom?"), vide o livro de Marco Aurelio Schaumloeffel: "Tabom - A Comunidade Afro-Brasileira de Gana" (São Paulo, Geração Editorial, 2014): clique aqui. Ver também o artigo de Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu: "Sou Brasileiro: História dos Tabom, Afro-Brasileiros em Acra, Gana" (Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005, Revista Afro-Ásia, número 33): on-line.
[4] Nelson Brito Rodrigues: "O Povo Sutil - um povo que caiu no ostracismo da História Paranaense". São Paulo, Editora Gregory, 2012, página 34 e ss.
[5] Vide o livro de Steven Barboza: "American Jihad - Islam After Malcolm X". New York, Doubleday, 1995. 370 páginas.
[8] Sobre a Colônia Sutil, acessar o site do jornal Gazeta do Povo: aqui. E no Portal Comunitário: clique aqui.
[11] Leia matéria sobre os Sutis em Cianorte clicando aqui.
[12] Sobre a Rua dos Sutis em Japurá: clicar aqui.
[12] Sobre a Rua dos Sutis em Japurá: clicar aqui.
Ótimo trabalho irmão que Allah te recompensa
ResponderExcluirTodos os louvores são apenas para o Altíssimo.
ResponderExcluirRogamos a Ele que aceite nossos humildes esforços em resgatar um pouco da história do Islamismo no Brasil.
Belíssima pesquisa, obg por compartilhar essa pg quase esquecida de nossa história.
ResponderExcluirExcelente texto, como sempre. Mas acredito que existe um anacronismo nele. O Miguel Subtil relacionado a Cuiabá foi um bandeirante paulista do começo do século 18. A revolta Malê aconteceu no começo do século 19.
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