domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Revolta dos Malês


Negro de origem muçulmana, por Debret [1]
A História do Islamismo no Brasil, além do processo da imigração árabe, necessariamente passa pela Revolta dos Malês, na Bahia.
Arrancados de suas terras e de suas casas e separados de suas famílias na África pelo odioso tráfico negreiro, os muçulmanos negros chegavam ao Brasil como escravos e eram impedidos de praticar sua religião ancestral, sofriam a conversão forçada, porém não aceitavam a imposição da religião predominante de seus senhores brancos.
Apesar de todo o sofrimento e terríveis adversidades, mantiveram suas raízes e conservaram-se fiéis ao Islam.
Muçulmanos negros (escravos e libertos), pertencentes principalmente aos povos iorubá, haussá e nupe, ensinavam aos filhos o idioma árabe e a recitação e memorização do Nobre Alcorão.
Talvez tenham sido eles os primeiros a praticar a difusão do Islam (dawah) e o esforço pela causa de Allah (jihad) no Brasil [2].

Em 1835, em Salvador, organizaram a Revolta dos Malês, um acontecimento histórico originário, imprescindível para a compreensão da História do Islam em terras brasileiras.
Seus principais líderes foram os alufás (mestres muçulmanos) Ahuna e Pacífico Licutan, ambos escravos, e Manoel Calafate, liberto.
A Revolta foi rapidamente sufocada pelas tropas imperiais e muitos de seus integrantes foram condenados a penas cruéis, como o banimento e a morte.

José Pedro Machado, em sua tradução portuguesa do Sagrado Alcorão (2ª edição, Lisboa, 1980, págs. 20-21), faz referência à versão Malê da primeira surata do Nobre Alcorão (Al-Fatiha), a qual transcrevemos literalmente:

"Ali-ramudo lilái Rabili alamina
A ramano araini
Maliqui iáu midina
Ia canan aludo Oiá canan cita-ino
Errê diman cirata Ali mucitaquino
Cirata alazina Ani-amutá alê-im
Gair-le-mangalobê Alei-y-uá-la-lolina."

A Revolta dos Malês está inserida nos grandes movimentos históricos de emancipação e libertação dos povos negros no Brasil, tais como o Quilombo dos Palmares (em Alagoas, na segunda metade do século 17), a Revolta dos Búzios (ou Conjuração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798), a Revolta de Manuel Congo (no Rio de Janeiro, em 1838), a Revolta de Cosme Bento (durante a Balaiada, no Maranhão, em 1840), a Revolta do Queimado (no Espírito Santo, em 1849) e a Revolta da Chibata (no Rio de Janeiro, em 1910).

Uma preciosa e fundamental fonte de estudo dessa Revolta é a obra de João José Reis: "Rebelião Escrava no Brasil - a História do Levante dos Malês em 1835". São Paulo, Companhia das Letras, 2012, 3ª edição, 665 páginas.

João José Reis - Rebelião Escrava no Brasil

Uma outra obra importante, cujo mérito principal consiste em ser a primeira a sistematizar informações sobre a Revolta, é o livro de Décio Freitas: "A Revolução dos Malês - insurreições escravas". Porto Alegre, Editora Movimento, 1985, 2ª edição, 104 páginas. [1ª edição, 1976]

Décio Freitas - A Revolução dos Malês

Outra referência a ser destacada (em que seu autor contesta alguns pontos de vista de João José Reis) está presente no capítulo intitulado “Sobre a rebelião de 1835 na Bahia” no livro do ilustre africanólogo Alberto da Costa e Silva: “Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África.” Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2011, 2ª edição, 288 páginas. [3]

Alberto da Costa e Silva - Um rio chamado Atlântico

Ainda que indiretamente relacionada à Revolta dos Malês na Bahia, há a notável biografia de Rufino José Maria, um escravo oriundo do Reino de Ọ̀yọ́ que viveu em Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife. Entre os malês de Recife, onde houve rumores de uma conspiração africana, em 1853, Rufino tornou-se um alufá, um mestre malê ou um líder religioso muçulmano. A vida de Rufino encontra-se na obra coletiva de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim de Carvalho: “O Alufá Rufino - Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 - c. 1853).” São Paulo, Companhia das Letras, 2010, 1ª edição, 520 páginas.

Reis, Gomes e Carvalho - O Alufá Rufino

Informações sobre o comportamento, costumes e hábitos dos Malês são encontráveis, passim, na obra do insigne autor afrodescendente e abolicionista Manuel Raimundo Querino: "Costumes africanos no Brasil." Salvador, Eduneb (Editora da Universidade do Estado da Bahia), 2010, 332 páginas.  1ª edição, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1938, 351 páginas, organizada por Arthur Ramos. [4]

Manuel Querino - Costumes africanos no Brasil


No âmbito literário, há o romance histórico, em que se destaca a figura feminina da nagô alforriada Luísa Mahin, de autoria de Pedro Calmon: "Malês - a Insurreição das Senzalas". Rio de Janeiro, Editora Pro Luce, 1933, 1ª edição, 166 páginas.  2ª edição, Salvador, Academia de Letras da Bahia / Assembléia Legislativa da Bahia, 2002, 142 páginas. [5]

Pedro Calmon - Malês: a insurreição das senzalas

Do jornalista e cartunista Maurício Pestana, foi publicada a notável cartilha "Revolta dos Malês – A saga dos muçulmanos baianos". Salvador, Escola Olodum, 2010. Distribuída gratuitamente nas escolas, a cartilha constitui importantíssima iniciativa na inclusão da temática afro-brasileira nos currículos escolares.

Maurício Pestana - Revolta dos Malês
Ainda que não relacionada à Revolta dos Malês, mas importante na descrição das condições de vida de um escravo muçulmano em terras brasileiras (Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul), vale citar a obra autobiográfica de Mahommah Gardo Baquaqua (nascido no atual Benin e falecido na Inglaterra, c. 1830 - c. 1857) intitulada "Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, um nativo de Zoogoo, no interior da África"  (São Paulo, Editora Uirapuru, 2017, 80 págs.).

Mahommah Gardo Baquaqua - Autobiografia

Notas:

[1] Crédito da pintura: Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, por Jean Baptiste Debret (1768-1848). Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2006, volume único, 409 páginas.
[2Sobre a dawah, João José Reis afirma: "Velhos malês muitas vezes procuravam atrair malês novos. Os documentos da devassa sugerem um forte movimento de proselitismo e conversão em curso na Bahia da década de 1830" (in: Rebelião Escrava no Brasil, página 180). Sobre a jihad, vide o artigo de Paul E. Lovejoy: Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos da Bahia. In: Revista Topoi, Rio de Janeiro, nº 1 (2000), pp. 11-44 (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, para download). Contudo, não compartilhamos em absoluto do conceito de jihad postulado pelo orientalista Lovejoy, equivocadamente identificado com a noção cristã medieval de "guerra santa", de todo estranha ao Nobre Alcorão, à Sunnah e aos Ahadith. A propósito, em árabe a palavra "guerra" é حرب (harub), vocábulo em absoluto distinto de "jihad" (جهاد‎), cujo significado em árabe é "esforço".
[3]  Também contendo o grave equívoco conceitual em relação à jihad apontado na nota anterior, o capítulo do livro de Alberto da Costa e Silva, sob a forma de artigo, de 2002, está disponível no site da ABL (Academia Brasileira de Letras) para leitura on-line.
[4 A propósito, é do antropólogo Arthur Ramos uma descrição física dos malês: "eram altos, fortes, robustos e trabalhadores. Usavam uma barba a cavanhaque. De vida privada regular e austera, não se misturavam com os outros escravos." In: O Negro na Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971, pág. 37, 2ª edição, 252 páginas. GoogleBooks
[5] Sobre a malê Luísa Mahin, vide artigo na Wikipédia.